sexta-feira, 14 de março de 2014

No meu último ano de faculdade, estava voltando do estágio na promotoria da infância e juventude, quando o ônibus parou no terminal e subiu um rapaz com um discurso comovente. Ele precisou de ajuda para subir no ônibus e se locomovia com dificuldade. Vinha pedir ajuda financeira. A história dele era a seguinte:

O rapaz trabalhava como motoboy, até que sofreu um acidente. A moto, que era dele, ficou inutilizada. Ele também sofreu gravemente, precisou fazer duas cirurgias na perna, ficou muito tempo internado, sem poder prover o sustento à sua família, e ainda não estava recuperado, pois não conseguia caminhar direito. Também não podia voltar a exercer sua profissão, não só porque não tinha mais moto, mas também porque não conseguia mais pilotar. Como não trabalhava com carteira assinada, ficou totalmente desamparado pelo empregador. Não recebeu seguro-desemprego, indenização, despesas médicas, mesmo tendo se acidentado enquanto estava trabalhando. 
Agora estava em uma situação particularmente difícil, porque sua filha, um neném de poucos meses, precisava tomar um leite especial, que geralmente é fornecido gratuitamente nos postos de saúde, mas que agora estava em falta. Sem condições de alimentar a criança, prestes a ser despejado, disse que o Conselho Tutelar queria tirar a criança dos braços da mãe, que estava naquele momento conversando com o conselheiro do lado de fora do terminal. Precisava de dinheiro para comprar o leite da criança. Agradeceu com lágrimas e desceu.

Enquanto o ônibus se afastava eu comecei a ficar angustiada. Aquele rapaz não precisava estar naquela situação se ele não fosse ignorante sobre os próprios direitos. Deu vontade de descer atrás dele e dar alguma orientação jurídica, tirar aquele homem daquela situação de abuso e injustiça em que ele se encontrava só porque ele não sabe que tem direitos. No caminho pra casa, eu chorei por causa dele, e entrei em crise, pensando na minha covardia e na falta de iniciativa em ajudar uma pessoa que precisava de algo que eu poderia oferecer. Por vários dias eu fiquei mal por causa daquela situação, achando um desperdício todo o meu conhecimento se eu não tinha a capacidade de descer de um ônibus pra ajudar uma pessoa em necessidade.

Outro dia eu tive que voltar a Curitiba pra resolver alguma coisa - eu quase não parei em casa em fevereiro - e estava no ônibus para voltar pra casa, na rodoviária quando entrou um rapaz meio desesperado. Ele contou que precisava viajar com a mulher e a filha, mas a criança acabou de completar seis anos, e precisaria de uma passagem para viajar. Disse que ele não sabia e não estava preparado pra isso, juntou todas as economias, mas ainda faltavam vinte reais. Era o mesmo rapaz. Milagrosamente curado e com uma filha que envelhece um ano por mês. Foi quando eu passei a me questionar.

Por que algumas pessoas preferem se humilhar com uma história inventada para pedir dinheiro do que trabalhar para conquistar suas coisas? Por que as pessoas dão dinheiro sabendo que pode ser um golpe? Afinal, não existem mil maneiras mais eficientes de ajudar a comunidade, de estender a mão e de ser solidário? Essas pessoas que sustentam a mendicância seriam as mesmas que não doam sangue, não fazem um trabalho voluntário, não doam dinheiro pra quem faz um trabalho de desenvolvimento comunitário e realmente precisa de ajuda financeira? Será que essas pessoas realmente pensam que estão ajudando alguém ou só querem se livrar de um problema ou de uma carga de culpa por nunca fazer nada?

Eu preciso, preciso, preciso que exista mais alguém inconformado nesse mundo, porque desse jeito não dá.

Ajudando as pessoas

quarta-feira, 5 de março de 2014


Still looking for the blinding light
Uma cegueira branca. Repentinamente, uma pessoa deixa de enxergar. Seu mundo não se encheu de escuridão, mas de um clarão, como uma neblina espessa ou um refletor inquietante. Os personagens que não têm nome, um a um, descobrem que não enxergam mais, enquanto o leitor é apresentado a um mundo dominado pelo medo, pela dúvida e pela cegueira. 
O primeiro cego: pra mim é como se não houvesse noite.

None of us are bullet proof
Os primeiros cegos são postos em quarentena, em um prédio abandonado que antes fora um manicômio. Não demora muito para que as coisas fujam de controle e a construção volte à sua antiga função. Com mais doentes do que pode acomodar, pouca comida e higiene nenhuma, resta pouco lugar para a solidariedade. Não existe confiança cega. As medidas de emergência são inúteis. Os pesquisadores cegaram. Os cuidadores cegaram. Os governantes cegaram. Os guardas cegaram.
O médico: o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos.

You're the vision that gives me sight
Uma única pessoa, a mulher do médico, misteriosamente conserva a sua visão durante todo o tempo. Fingindo estar cega, acompanha o marido até a quarentena, onde assiste o horror que aos demais é poupado. Ao mesmo tempo em que pode ajudar a um seleto grupo de pessoas anônimas, se desespera com a sua ocasional impotência. Ela tem medo que os outros descubram a sua visão e a tornem escrava. Quando não existem mais sãos para vigiar os cegos, a mulher do médico conduz o grupo pela cidade, em busca de abrigo e comida. É pelos seus olhos que observamos o caos e a crueza de um mundo sem aparências.
 A mulher do médico: o único milagre que podemos fazer seria o de continuar a viver.

E o que mais?
O Ensaio sobre a Cegueira é um livro sofrido sobre o sofrimento e a maldade humana. Nas palavras do autor, "Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo.". A escrita é fluida no estilo, como um senhor de idade a contar uma história para um desconhecido no ponto de ônibus. O conteúdo, por outro lado, é quase um vômito. Não tem nenhum pudor em expor toda a imundície que está no interior do homem.

É um livro muito sincero, que colocou muitos 'e se...' na minha cabeça. Comecei a imaginar todas as situações que o livro não expõe, mas que poderiam acontecer naquele cenário. E se uma grávida entrasse em trabalho de parto? E o que terá acontecido com os bebês? E se os cegos conseguissem, afinal, organizar um novo governo, como ele seria? E se essa epidemia desse lugar a outras epidemias? E se toda a comida já produzida acabasse completamente?

A edição da Companhia das Letras é aquela delicinha em papel polen soft <3. Quanto à arte da capa... não entendi o que significa. Se alguém quiser explicar nos comentários... A ortografia é a utilizada em Portugal, por desejo do autor. E o jeito de escrever é confuso até a 30ª página. Saramago não é fácil com os parágrafos e pontos finais. Também não usa travessão ou aspas, só uma letra maiúscula e uma vírgula separam uma fala da outra.

A capa do livro é branca, e ficou bastante suja, porque esse livro passeou bastante. (Eu tenho uma nova teoria de que os melhores livros são aqueles que foram vividos, que livro sujo é livro que foi lido, que as cicatrizes são sinal de que ele foi bem aproveitado e os rabiscos de lápis significam que alguém estava prestando mais atenção no conteúdo que na forma). O livro é meu nosso, mesmo. Foi presente de casamento (na nossa lista de presentes só tinha livros).

A história foi adaptada para o cinema em 2008, com Juliane Linda Moore e Mark Fofo Ruffalo interpretando o casal Médico e Mulher do Médico, e o brasileiro Fernando Meirelles na direção. Ficou tão legal que até o autor curtiu. Com uma fidelidade impressionante, tive a impressão de que a única adaptação no roteiro foi o corte de algumas cenas que tornariam a película muito extensa. (Mas eu senti falta das cenas do armazém do supermercado). O filme está disponível no Netflix, mas dublado em português :/

Os trechos em negrito são da música Blinding Light, de Switchfoot.

É uma leitura que exige estômago e, pra quem não leu Saramago, um pouco de força de vontade pra vencer as primeiras trinta páginas. Você pode adquirir o seu exemplar físico ou e-book na loja da editora Companhia das Letras ou nas principais livrarias.

Ensaio sobre a Cegueira (José Saramago)