quarta-feira, 30 de julho de 2014



It's close to midnight
Something evil's lurkin' in the dark

Por séculos, a Reserva de Caça Canterville carregou a reputação de mal-assombrada. Não por acaso, pois contava com um fantasma competente para operar suas fantasmices. Manchas de sangue no chão, o arrastar de correntes à meia-noite e a habilidade de incorporar diferentes personagens assustadores são habilidades que constam no currículo desse renomado fantasma.
Há três séculos ele é bem conhecido, na verdade desde 1584, e sempre aparece às vésperas da morte de algum membro da nossa família, disse Lorde Canterville.

They're out to get you
There's demons closing in on every side

Pouco convencida pelos avisos dos vizinhos, a família de um diplomata americano mudou-se para a residência onde certamente não receberiam visitas. Foi assim que o Sr. e a Sra Otis com seus filhos Washington, Virginia e os gêmeos se intrometeram nos assuntos assombrosos do magnífico fantasma. Não existe nada mais irritante para um fantasma do que alguém que não o leve a sério. No entanto, jamais passou pela cabeça oca do fantasma que um dia seria tratado com tamanho desrespeito, especialmente pelos gêmeos, que passaram a assombrá-lo dia e noite.
Depois disso, ficou extremamente doente por alguns dias, mal saindo do quarto, a não ser para retocar a mancha de sangue.

'Cause I can thrill you more
Than any ghoul would ever dare try

Embora o título remeta a uma história aterrorizante, o que vemos é uma comédia que rapidamente se converte em um desfecho emocionante, como um roteiro da Sessão da Tarde, mas de uma delicadeza profunda. Sofrendo mais do que em toda a sua morte, o fantasma de Canterville se vê desesperado, e é nesse momento que encontra a solução para o descanso eterno, na família que o atormentava. Um conto que, em poucas páginas, faz rir e faz chorar.
Você pode me ajudar. Pode me abrir os portais da morte, porque traz o amor sempre com você, e o amor é mais forte do que a morte.

E o que mais?
Através da história do fantasma, Oscar Wilde dá conta de criticar a aristocracia inglesa e a cultura americana ao mesmo tempo. A primeira, marcada pelos títulos hereditários e pela cultura do luxo. A segunda, mergulhada no consumo e no pragmatismo. Wilde narra, antes de tudo, o conflito cultural entre Inglaterra e Estados Unidos, através de personagens estereotipados e caricatos que dão o tom de comicidade e ironia que marcam a obra. 

A edição que eu foi publicada pelo selo Barba Negra da editora Leya, na coleção Eternamente Clássicos. Tem ilustrações de Wesley Rodrigues e tradução de Elisa Nazarian. O miolo foi impresso em papel lux cream, muito confortável para a leitura. A arte de capa e os desenhos remetem a um estilo sombrio, mas imprimem a exata comicidade ou dramaticidade da cena retratada.

Comprei esse livro em Novembro de 2012, para completar a coleção "Eternamente Clássicos", composta também dos títulos O Corcunda de Notredame, O Mágico de Oz e A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça. O Mágico de Oz foi difícil de conseguir, e eu já vi edições mais novas que utilizam material de qualidade inferior.A coleção contaria também com outros títulos como O Corvo e O Jardim Secreto, mas parece que foi abortada. Nem o selo Barba Negra existe mais.

O conto foi a primeira história publicada de Wilde, primeiro em uma revista, depois no livro Lord Arthur Saville's Crimes and other stories. A história foi adaptada 5 vezes em filme para telinha e telona, e uma animação está em fase de pré-produção. A obra também se converteu em música, ópera e musical, foi publicada como graphic novel, dramatizada no rádio e inspirou um filme em Bollywood.


Os trechos em negrito são da música Thriller, de Michael Jackson. Coloquei a música no repeat enquanto escrevia, e agora não consigo tirar o Mark Foffalo da cabeça, muito embora ele não tenha relamente nada a ver com o livro. Alguém mais não consegue ouvir Thriller sem pensar em De Repente 30? o/

A edição que eu tenho está esgotada, mas a obra é de domínio público. Você pode comprar em qualquer livraria, ou fazer o download no seu computador do original ou da versão para o espanhol.

O Fantasma de Canterville (Oscar Wilde)

sábado, 26 de julho de 2014

Eu nunca tive quatro avós.

Quando eu nasci eram três. E as histórias de uma avó Adelina, que foi homenageada com o meu nascimento - Annie Adelinne. Quando penso em vó Adelina, penso em uma mulher que sofreu muito. Não sei se é justa a imagem que eu tenho dela, mas é que não a conheci. Mineira, muquirana, muito honesta, batalhadora, mãe de 11 filhos, muitas vezes sozinha, algumas vezes solitária. Vi três ou quatro fotos da minha avó Adelina, que morreu de uma doença que, hoje, é a coisa mais besta do mundo: pedra na vesícula. A história da conversão dela é uma das mais lindas que eu conheço.

Quando meu irmão nasceu, três anos depois, já eram apenas dois. A imagem do vô Joviniano e do seu bigode, no entanto, só recordo das fotos que vi. Mas as histórias são tantas, que ele parece viver ainda através delas. Poderia ser um personagem de Ariano Suassuna ou de Jorge Amado. É o sanfoneiro profissional a quem toda a família se refere quando diz, orgulhosa "eu tenho a música no sangue". Festeiro, despreocupado, irreverente, mulherengo, muitas vezes ausente, mas nunca esquecido. Até na hora da morte estava distribuindo o que tinha, o chapéu a um, o relógio a outro...

Quando eu casei, era uma só. Meu avô Almerônio foi o avô que eu tive na vida. Ainda consigo ouvi-lo dizer "Menino malino! Fica bulinando no que não deve!" Lembro da sala onde ele fazia serigrafia, onde a presença de netos era proibida, o que só tornava as coisas mais interessantes. Eu, a única neta que foi morar longe, sempre fui alvo de mimos. Não podia pensar alto que tinha vontade de alguma coisa, que ela aparecia. Era quase mágica. Lembro de quando ele dirigiu da Bahia até Foz do Iguaçu, com o carro cheio de guloseimas baianas - um saco cheio de jambo só pra mim. Lembro de como ele acordava cedo e ligava o rádio do carro, tocando Roberto Carlos. Seu jeitinho discreto de dizer pro mundo que não é hora de dormir.

[O próximo parágrafo é triste, não pude deixar de escrever, faz parte da minha história com os meus avós, mas se quiser, pule para o próximo]

Lembro de quando minha mãe recebeu a notícia do câncer. Lembro do estado triste em que ele estava em sua última semana de vida, e agradeço a Deus por ter visto, por estar presente naquele momento, o último. Lembro do último olhar, quando me despedi dele pela manhã. Lembro de quando eu saí do banheiro do hotel em Salvador, pronta pra fazer um comentário indiscreto, e encarei três caras de assombro. Foi a primeira vez em que morreu alguém que eu conhecia. O choro do meu irmão, nos meus braços, dizendo que não queria ver morto o nosso avô. A viagem insone de volta ao interior da Bahia, acompanhando minha mãe. O choro cortante da minha avó. O cemitério, o momento exato em que ele foi descido à cova. Exatamente um mês depois, as lágrimas que eu segurava explodiram, enquanto o sol se punha no mar de São Luis do Maranhão. Ninguém disse nada. Não precisava. Há três anos e 11 dias meu avô morreu, e no dia 15 de julho de 2014 eu chorei de novo.

 

Hoje eu tenho uma avó. Vó Lourdes. A Dona Lourdes que todo mundo conhece. "Sou neta da Dona Lourdes" é um currículo completo em Camacan/BA. A única avó que eu conheci. Doce, sensível, disposta, batalhadora, talentosíssima. Todo mundo nessa família acha que prega um botão melhor que os outros, afinal, "minha avó é costureira de mão cheia". Ela fez o meu vestido de noiva à distância - eu só provei uma vez, com uma semana de antecedência. Mas isso porque ela tem experiência, com um armário cheio de vestidos de princesa das netas, quase uma linha do tempo em fita de cetim. Minha vó é uma fofa, e quem conhece concorda.

Eu nunca tive quatro avós, mas nunca me faltou. Eu não convivi tanto tempo com meus avós, como outros primos, mas nunca me faltou. Os avós que eu tive, pelo tempo que eu tive, e a avó que eu tenho ainda hoje, que deixa inbox no facebook com "BEIJOS DA VOVÓ", eles são mais do que eu mereço ♥

Dos avós que eu tive

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Não sei se é segredo pra alguém, mas eu estou em eterna conferência via email com alguns amigos mais chegados, conversando sobre todo tipo de coisa útil ou inútil e um dos temas polêmicos do grupo é o feminismo.

Falar sobre o tema é muito complicado, porque não existe um significado uníssono pra esse termo. De um lado, tem o feminismo" formado por putas feitas que não se depilam, odeiam os homens e querem dominar o mundo". De outro lado, tem o feminismo das mulheres oprimidas pelo machismo e pelo patriarcado e que exigem liberdade, mesmo que custe a liberdade alheia, afinal, todos os homens são estupradores em potencial. Enquanto isso, o famoso "feminismo é a luta pela igualdade" vai se tornando um mito...

Por trás da ideia de igualdade e de direito de escolha, existe sempre alguma dominação.


Pra começar, a ideia de igualdade é uma ideia falsa e opressora, porque as pessoas não são iguais. A única coisa que nos faz iguais é o fato de sermos todos humanos, e isso corresponde a um núcleo mínimo de direitos que todas as pessoas devem desfrutar, do qual ninguém pode abrir mão, independente de gênero, idade, cultura, religião ou o que for. Mas fora desse núcleo irredutível que corresponde à dignidade das pessoas, ninguém é igual. E essa é a graça. É por isso que convivemos em sociedade, que precisamos dos outros. Cada ser humano é único!

E é aí que vem uma coisa linda. Como cada ser humano é único, não existe "coisa de homem", "coisa de mulher", "coisa de asiático", "coisa de brasileiro". É claro que muitas dessas "coisas" serão encontradas mais facilmente em um grupo identificado de pessoas, mas por nenhum outro motivo senão o modo que foram criadas e como se relacionam na sociedade. Isso significa que cada um pode fazer o que quiser, mas também significa que os critérios para julgar devem ser iguais.

Eu vejo que muitas "bandeiras feministas" não têm o objetivo de tornar as coisas legais pra todo mundo, mas dar à mulher a liberdade de fazer aquilo de mais escroto , nojento e repugnante que os homens fazem por causa do machismo. A luta não é para que as atitudes machistas sejam eliminadas, mas que elas sejam liberadas pra todo mundo. Acontece que o que é feio pra um, é feio pro outro também. O que é degradante e fere a dignidade do homem (muito embora ele possa pensar que está abafando), também é degradante para s mulheres. O negócio é não nivelar por baixo.

Eu li recentemente um livro muito interessante chamado "O Machismo Invisível" (Marina Castañeda), que fala especialmente como o machismo afeta a vida dos homens. Claro, o machismo faz mal pra todo mundo. Oprime todas as pessoas. Faz com que os homens tenham que adotar uma atitude determinada para que sejam considerados "homens" pelos demais.

O que me deixou triste é que, quando a autora apresentava soluções para os problemas apontados, ela nunca considerou que as pessoas devem dialogar e combinar a forma como funciona melhor pra elas. Se o marido tem direito a ter sua conta particular e gastar como quiser, comprando um carro, por exemplo, sem falar com a esposa, então a esposa também deve ter sua conta particular e gastar como quiser, comprando um carro, por exemplo, sem falar com o marido. A ideia de que o esposo e a esposa devem conversar um com o outro sempre que quiserem usar o dinheiro da família pra comprar um carro, por exemplo.

É triste porque aquelas características consideradas "femininas", de consideração com o outro, de compaixão, de sensibilidade, são vistas como fraqueza, enquanto o egoísmo e a independência são supervalorizados. Isso nos enfraquece como sociedade.

Será que ninguém ainda pensou que certas coisas simplesmente não deveriam acontecer de forma alguma? Que se é nojento que um homem use as mulheres como objetos sexuais descartáveis, que seja violento, que não permita que elas expressem sua opinião, a recíproca também é verdadeira? Que anos de oprimido não justificam o desejo de opressão? Por que o modelo de mulher ideal é uma Lara Croft toda-poderosa que não precisa de ninguém e se vira sozinha? Por que, em vez de querer formar mulheres super-independentes, não autorizamos os homens a serem sensíveis, compassivos e dependentes?

Aqui entra a questão do direito de escolha. Porque se o modelo desejado é o da mulher que se despiu da fraqueza (aquelas características que a sociedade considera femininas) e se revestiu de super-poderes (aquelas características que a sociedade considera masculinas), as escolhas da mulher serão livres apenas se ela escolher se despir de sua fraqueza e se revestir de super-poderes. A mulher que escolhe ser mãe em tempo integral é oprimida. A mulher que é dona de casa é coitada. A mulher que dá de quatro está se sujeitando a um modelo de submissão.

As mulheres de hoje (e eu falo principalmente por mim) carregam nas costas o peso da obrigação de ser bem-sucedida. Aquela obrigação de esfregar na cara dos homens que podemos ser qualquer coisa, fazer qualquer coisa, ou mesmo que somos melhores que eles. O corpo é seu, a vida é sua, você é livre pra ser puta, mas não pra casar, pra deixar o mercado de trabalho, ou pra nunca entrar nele. Você não é livre pra amar e paparicar o seu marido (mesmo que em reciprocidade).

É por isso que eu não me identifico com o feminismo. Porque é muito arriscado se identificar com uma luta que não tem mais identidade. E não acredito no ideal de igualdade de gênero. Porque o que eu acredito é nesse núcleo irredutível de direitos para todos os humanos. E que para que todos desfrutem desse núcleo mínimo, precisamos nos despir do nosso egoísmo, da nossa independência, da nossa necessidade de fazer sucesso, e sermos todos mais servos, mais humildes, mais compassivos, mais "femininos".

Eu não me identifico com o feminismo