quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Blogagem Coletiva: Vá se arrumar que hoje eu vou lhe usar



Usada.

Eu nunca pensei que aconteceria comigo. Também não pensei como eu reagiria se acontecesse. Quando eu contei, me perguntaram logo porque eu não gritei, ou bati no cara, ou provoquei um escândalo. Eu nunca pensei que minha reação fosse ficar sem reação.

Não que nunca tivesse vivido situações decorrentes dessa mentalidade de que as mulheres estão aí para a satisfação masculina, mas nunca, nunca de forma tão invasiva e desrespeitosa.

Foi assim: quarta-feira, por volta das sete horas da manhã, entrei em um ônibus lotado porque estava atrasada. Vestia uma camisa simples e uma calça de alfaiataria, que estava um pouco justa pelos quilos que ganhei nos últimos meses, mas não do tipo que impede a respiração. O que eu quero dizer, especificamente, é que a roupa que eu vestia não era um convite a nada. Eu não estava pedindo nada. Eu não me vestia de forma indecente e, definitivamente, eu não tenho culpa pelos meus quadris avantajados e não tenho obrigação de escondê-los de ninguém. 

Então, eu estava em um ônibus lotado, e até aí não vemos nada demais. Ônibus lotado às sete da manhã é a coisa mais normal do mundo. O que aconteceu em seguida, no entanto, não é normal. Pode até ser comum, mas eu tenho certeza de que não é normal. Na tentativa de encontrar um lugar minimamente confortável, me meti entre duas senhoras que conversavam animadamente e um rapaz sonolento encostado em uma porta. Fiquei de frente para a janela; atrás de mim, tudo o que eu menos esperava.

Dentro de um ônibus lotado, não dá pra levar tudo a ferro e fogo. Existem apertos, empurrões e puxões que não acontecem de propósito e que, muitas vezes, não dá pra evitar. Mas não foi nada disso o que aconteceu. Cerca de cinco minutos depois, eu o senti aproximando-se atrás de mim. No início não percebi e não dei a menor importância - o ônibus estava lotado. Foi como um estalo. Despertei de qualquer coisa que estivesse pensando naquela hora ao sentir uma pressão no ânus. Com algum esforço, me torci para olhar para aquela região, para verificar se foi o esbarrão da pasta de alguém ou qualquer outro movimento involuntário, mas vi apenas um par de calças cobrindo um volume pouco discreto.

Eu não acredito que isso está acontecendo comigo. Meu primeiro instinto foi fugir. Olhei, agoniada, para um lado e para o outro, mas não havia escapatória. Ele me encurralara entre o rapaz e as duas senhoras e eu não tinha como escapar pela frente ou pelas laterais. Se me movesse para trás, cederia ao seu desejo nojento. Olhei por cima do ombro. Era um homem de cabelos completamente brancos, camisa azul, com ombros fortes postos muito acima da minha cabeça. Agora já não tenho certeza se ele era assim tão alto ou se eu é que me sentia assim tão pequena.Com suas calças, fazia movimentos persistentes, aproveitando-se principalmente das curvas - favoráveis ou não ao seu movimento.

Eu sinto tanta vergonha. Eu sabia que não era minha culpa, mas me senti humilhada. Usada. Um constrangimento que eu senti que me levaria às lágrimas, mas elas não vieram. Uma raiva que eu imaginei que me faria gritar, mas eu não tinha voz. Eu não tinha fôlego. Eu não conseguia respirar. Olhei novamente por cima do ombro e percebi que tinha muito espaço livre por trás do homem. Ele não precisava ficar ali, tão perto de mim. 

Eu quero sair daqui. O trajeto até a primeira parada durou dez minutos. Dez minutos que nunca foram tão longos. Eu estava entre as duas portas, mas não esperei que as pessoas saíssem. Me atirei para o lado mais distante possível daquele dentro do ônibus e fiquei vigiando qualquer pessoa que se aproximasse. Eu não estava ouvindo as músicas que tocavam nos meus fones de ouvido. Eu não conseguia dar sentido às palavras do livro à minha frente. Eu não conseguia pensar em nada.

Dói tanto. Ser usada dói tanto. Eu cheguei à faculdade e me sentei na cadeira, mas não me senti confortável. Apesar de não ter penetrado profundamente, o tecido da minha calça era elástico o bastante e o corte dava sobras para permitir alguma penetração, e a fricção dos tecidos só piorou a sensação. Meu corpo ardia, meu interior também.

Não sei se por coincidência boa ou ruim, naquele dia o professor de Direito Penal iniciou a matéria dos crimes contra a dignidade sexual, e eu me sentia tão indigna. Usada. Coisificada. Como se eu não valesse nada, e o simples fato de estar ali fosse razão suficiente para que qualquer pessoa pudesse usar o meu corpo para ter prazer sexual.

Pela minha mente passaram várias cenas diferentes: o cara que acha que tem o direito (ou o dever?) de cantar uma mulher, da maneira mais vulgar, só porque meu tipo físico lhe agrada; o cara que não tem o menor pudor de levar para a cama a gatinha bêbada que encontrou na balada; o cara que força a companheira a cumprir o seu papel de mulher, até com ameaças e agressões; o cara que entra no quarto da filha de sete anos dizendo que ela vai ganhar um presente se não contar nada à mamãe.

Nenhuma delas tem culpa. A culpa é do estuprador, que sente que o mundo gira em torno do seu pau. Quando eu recuperei minha voz, decidi que não me calaria. Eu contei pra todo mundo porque eu não quero que isso aconteça com outras pessoas. Porque eu quero que eles saibam que nós estamos de olho. E não vamos nos calar.
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Esse post faz parte da Blogagem Coletiva "Vá se arrumar que hoje vou lhe usar". No dia 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, haverá um post de fechamento, com todos os links que participaram. Ainda dá tempo. Participe e divulgue.